JOGOS DE AZAR: VÍCIO, CULTURA POPULAR E A EROSÃO DO TECIDO SOCIAL NO BRASIL
- Mariele Santos
- 12 de set. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 6 de fev.

A prática dos jogos de azar no Brasil começou no século XIX, em 1808, com a chegada da família real portuguesa ao Rio de Janeiro. Com eles, vieram costumes culturais, incluindo a jogatina. Desde então, os jogos se adaptaram às mudanças políticas e sociais do país.
Durante o período imperial, o governo já tentava reprimir a proliferação de locais dedicados aos jogos, não com o objetivo de proibi-los, mas de regulamentá-los. Um exemplo é o jogo do bicho, criado em 1892 e combatido desde então, embora tenha sido formalmente classificado como contravenção penal apenas em 1941.
Os jogos de azar, como o jogo do bicho, o “tigrinho”, cassinos e bingos, sempre foram parte da vida cultural e social em várias partes do mundo, incluindo o Brasil, onde se tornaram um fenômeno popular. A combinação da adrenalina da aposta com a incerteza da sorte proporciona uma mistura de diversão e prazer imediato, atraindo milhões de pessoas, independentemente de classe ou status social. No entanto, por trás desse entretenimento aparente, os jogos de azar revelam impactos sociais profundos e complexos.
A Atração pelo Jogo: Prazer Imediato e Consequências Duradouras
O apelo dos jogos de azar está ancorado na promessa de ganhos fáceis e rápidos, criando a ilusão de que é possível transformar a vida financeira em um instante com um pouco de sorte. Essa narrativa de ascensão rápida seduz pessoas de todas as classes sociais, especialmente aquelas que enfrentam dificuldades econômicas, que veem no jogo uma oportunidade de “virar o jogo”. Contudo, essa promessa mascara perigos substanciais.

O vício em jogos de azar, reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um transtorno comportamental desde 1980, afeta cerca de 2,3% da população brasileira. Para os que caem nessa armadilha, as consequências vão além da perda financeira. A compulsão pelo jogo pode destruir relacionamentos, levar à falência pessoal e gerar instabilidade emocional, com problemas como depressão, ansiedade e, em casos extremos, suicídio. Esse vício cria um abismo do qual muitos não conseguem escapar, perpetuando ciclos de pobreza e exclusão social.
A Estrutura Social dos Jogos de Azar: Milícia, Tráfico e Corrupção
No Brasil, os jogos de azar clandestinos estão inseridos em uma estrutura que vai além do simples entretenimento. Eles são sustentados por três pilares interconectados: milícia, tráfico de drogas e corrupção. A complexidade desse sistema é evidenciada no caso do jogo do bicho, que há décadas está associado a esquemas de proteção e financiamento de milícias. Essas organizações criminosas não apenas lucram com os jogos, mas utilizam os recursos obtidos para exercer controle sobre comunidades, expandindo seu poder e influência.

O tráfico de drogas também está intimamente ligado aos jogos de azar clandestinos, uma vez que ambos compartilham uma infraestrutura de controle territorial e operações ilegais. Os lucros dos jogos são frequentemente lavados ou usados para financiar atividades ilícitas, alimentando uma rede de criminalidade que se estende por diversos setores da sociedade.
No centro dessa teia está a corrupção. Propinas pagas a agentes públicos, como policiais e políticos, asseguram a continuidade dessas operações, protegendo os operadores ilegais e garantindo que suas atividades permaneçam à margem da lei. A corrupção não só impede o combate efetivo a essas práticas, como também fortalece uma infraestrutura criminosa robusta, difícil de desmantelar.
A Legalização: Uma Solução ou a Expansão de Problemas?

Com a recente aprovação pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado de um projeto de lei que regulamenta os jogos de azar, surge a promessa de uma mudança significativa no cenário econômico do Brasil. A expectativa é que a legalização traga benefícios, como a geração de empregos, aumento na arrecadação de impostos e o desenvolvimento de regiões turísticas. No entanto, a legalização também levanta preocupações sobre o impacto social desses jogos.
A Erosão do Tecido Social
A proliferação dos jogos de azar, especialmente em comunidades vulneráveis, contribui para a erosão do tecido social. A busca por ganhos fáceis e imediatos, alimentada pela promessa do jogo, desvia a atenção de soluções sustentáveis, como a educação financeira e o trabalho honesto. O crescimento do vício em jogos, associado a redes criminosas, enfraquece ainda mais os laços comunitários, promovendo uma cultura de individualismo e desespero financeiro.
O vício em jogos de azar afeta de forma desproporcional as camadas mais pobres da sociedade, agravando as desigualdades já existentes. Famílias inteiras podem ser devastadas pelo endividamento e pela perda de recursos, perpetuando ciclos de pobreza e exclusão social difíceis de romper. Em vez de servirem como forma de entretenimento, os jogos de azar acabam se tornando uma armadilha para aqueles que buscam uma solução para suas dificuldades econômicas, algo que deveria ser abordado por políticas públicas eficazes e promovido pelo Estado.
Em um país marcado por desigualdades, o debate sobre os jogos de azar deve ir além das promessas econômicas e considerar seus impactos sociais e humanos, evitando que o entretenimento se transforme em uma nova fonte de problemas para uma sociedade já fragilizada.
Na década de 1920, durante o governo de Epitácio Pessoa, a exploração dos cassinos foi legalizada pela primeira vez, mas apenas em pontos turísticos. Na década seguinte, Getúlio Vargas promoveu a “era de ouro” dos cassinos, flexibilizando as regras para impulsionar o turismo e aumentar a arrecadação de impostos. Nessa época, cerca de setenta cassinos operavam no Brasil, empregando mais de cinquenta mil pessoas.

Em 1946, no governo de Eurico Gaspar Dutra, os jogos de azar foram novamente proibidos, influenciados por Dona Santinha, esposa de Dutra, que seguia fervorosamente os princípios da Igreja Católica. Ela acreditava que os cassinos prejudicavam a moral e os bons costumes.


Mesmo com a proibição, a prática dos jogos de azar continuou clandestinamente. Em 1993, a Lei Zico trouxe uma breve esperança de legalização dos bingos, mas as dificuldades de fiscalização levaram à proibição definitiva em 2004, pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva.
Até hoje, os jogos de azar no Brasil são regulados pela Lei das Contravenções Penais de 1941, que proíbe a exploração dessas atividades. Contudo, apesar da ilegalidade, os jogos continuam ocorrendo de forma clandestina, sustentados por redes criminosas.
A longa e complexa história dos jogos de azar no Brasil reflete sua profunda ligação com as dinâmicas sociais e econômicas do país, especialmente no que diz respeito às relações de poder e ao impacto sobre as populações mais vulneráveis.
REFERÊNCIAS
FILHO, Luis Carlos Prestes. Teoria das probabilidades no jogo, na ciência e nas políticas públicas. 1ª ed. Rio de Janeiro: E-papers, 2017.
PONCE, Thais Teixeira. A legalização dos jogos de azar no Brasil: impactos sociais e econômicos. 2019. 138 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) — Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2019. Disponível em: https://repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/27368/4/JogoAzarBrasil.pdf. Acesso em: 12 set. 2024.
SANTOS, Leandro. A proibição do jogo de azar no Brasil. Jusbrasil. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/a-proibicao-do-jogo-de-azar-no-brasil/432336564. Acesso em: 12 set. 2024.




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