APOGEU DE UM CONFLITO CALADO | NAGORNO KARABAKH: INJUSTIÇA E COVARDIA
- Mariele Santos
- 29 de set. de 2023
- 9 min de leitura
Atualizado: 3 de ago. de 2024
A história está repleta de conflitos étnicos e territoriais que geraram consequências humanitárias devastadoras. Um desses episódios recentes foi a guerra entre o Azerbaijão e a Armênia, que eclodiu em 2020 na região disputada de Nagorno-Karabakh, e que teve profundos impactos humanitários.
Mapa República de Nagorno-Karabakh — Foto: Alexandre Mauro/G1.
Como isso aconteceu?
Antecedentes históricos (início do século XX): A história da disputa entre o Azerbaijão e a Armênia remonta ao colapso do Império Russo no início do século XX. Em 1918, após a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa, a região de Nagorno-Karabakh, habitada por uma maioria étnica armênia, foi incorporada à República Democrática do Azerbaijão. Esse movimento desencadeou tensões étnicas, já que os armênios buscavam a reunificação com a Armênia.
Anos 1980 e 1990 (intensificação do conflito): As tensões em Nagorno-Karabakh aumentaram significativamente nas décadas de 1980 e 1990, à medida que ambos os lados reivindicavam o território como seu legítimo direito. A União Soviética, que controlava a região, não conseguiu resolver as tensões de forma eficaz. Em 1988, o governo de Nagorno-Karabakh votou pela unificação com a Armênia, desencadeando protestos e violência.
Em 1989, a Armênia e o Azerbaijão entraram em confronto direto, resultando em perdas humanas significativas. Em 1991, com o colapso da União Soviética, ambos os países declararam independência, aprofundando ainda mais o conflito.
Guerra e cessar-fogo de 1994: A guerra em larga escala eclodiu em 1992, quando as forças armênias e azerbaijanas entraram em confronto direto em Nagorno-Karabakh e nas regiões circundantes. A guerra foi marcada por combates intensos, ataques a civis e deslocamento em massa de pessoas. Em 1994, um cessar-fogo mediado pela Rússia foi finalmente alcançado, encerrando formalmente o conflito.
Ressurgimento do conflito em 2020: As décadas seguintes ao cessar-fogo foram caracterizadas por uma paz instável, com confrontos esporádicos e um status quo precário em Nagorno-Karabakh. No entanto, em setembro de 2020, a situação escalou rapidamente. O Azerbaijão lançou uma ofensiva militar em grande escala em Nagorno-Karabakh, com o apoio da Turquia, enquanto a Armênia respondeu mobilizando suas forças.
Essa escalada de violência resultou em uma série de confrontos mortais, com vítimas civis e militares de ambos os lados. A comunidade internacional expressou preocupação com a situação e instou as partes a negociar um novo cessar-fogo. Em novembro de 2020, um acordo de cessar-fogo foi alcançado, estabelecendo uma trégua e permitindo a entrada de forças de paz russas na região.
As tensões entre os dois lados têm aumentado significativamente nos últimos meses, e culminou em confrontos. O momento é importante porque as potências que atuaram como mediadoras no passado — como Rússia, França e Estados Unidos — estão focadas em lidar com a pandemia de Covid-19, em meio a eleições presidenciais (como no caso norte-americano) e uma lista de crises no mundo, do Líbano a Belarus.
Conflitos menores registrados em julho levaram a uma resposta internacional silenciosa. A Turquia — que apoia os turcomanos étnicos do Azerbaijão aos quais os turcos são aparentados — realizou grandes exercícios militares com os azeris em julho e agosto.
O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, disse que Ancara ficaria do lado do Azerbaijão “com todos os seus recursos e o coração”. Ele não indicou diretamente se seu país está fornecendo especialistas militares, drones e aviões de guerra ao lado azeri, como alega a Armênia. O Azerbaijão nega.
Foto: Hayk Baghdasaryan — 8.out.2020/Photolure/Reuters.
Em resumo, a guerra entre o Azerbaijão e a Armênia é um conflito complexo que se estende por décadas e tem suas raízes em disputas étnicas e territoriais. A história desse conflito é marcada por períodos de violência, tensões e tentativas de resolução, com o último surto significativo de violência ocorrendo em 2020. A situação continua sendo um desafio para a estabilidade na região do Cáucaso.
É evidente que também estão em jogo interesses energéticos significativos. De acordo com o Sipri, as dinâmicas geopolíticas relacionadas aos oleodutos que conectam o Mar Cáspio à Europa — localizados a aproximadamente 60 quilômetros da área em disputa e ocasionalmente alvos de ataques — conferiram maior relevância ao conflito para várias nações. Conforme observa Ariel Cohen, do Atlantic Council, as aspirações da Europa de explorar os recursos do Mar Cáspio como uma forma de diminuir sua dependência das fontes de petróleo russas podem estar ameaçadas devido a esse conflito.
A guerra em Nagorno-Karabakh causou uma séria crise humanitária. As hostilidades resultaram em mortes e ferimentos, deslocamentos em massa de civis e a destruição de infraestruturas essenciais. Isso deixou muitos armênios desabrigados, sem acesso a cuidados de saúde adequados e em situação de insegurança alimentar. Além disso, a falta de acesso a água potável e saneamento básico tornou a vida ainda mais difícil para as pessoas afetadas.
República de Nagorno-Karabakh deixará de existir em 2024
O presidente da região, Samvel Saharamanyan, recentemente assinou um decreto que extingue todas as instituições locais a partir de 1º de janeiro. Enquanto isso, mais da metade da população local, composta por 120 mil pessoas, já fugiu em busca de segurança, percorrendo a sinuosa estrada de montanha que liga o território à Armênia.
Essa fuga em massa se segue a uma ofensiva militar relâmpago de 24 horas pelo Azerbaijão, que tomou o controle da região na semana passada. Lideranças locais e o primeiro-ministro armênio, Nikol Pashinyan, acusam o Azerbaijão de promover uma limpeza étnica, uma acusação alarmante que coloca em foco a difícil situação humanitária da região.
De acordo com informações do governo em Ierevan, até a manhã desta quinta-feira, 68.386 refugiados haviam cruzado a fronteira em busca de segurança. Os relatos de refugiados, como o de Hayk, ilustram as dificuldades e incertezas enfrentadas por aqueles que buscam abrigo. Hayk e sua família foram acolhidos em Goris, na Armênia, por uma equipe da Cruz Vermelha, que providenciou comida e verificou se eles tinham roupas adequadas. No entanto, a questão de acomodação e destino para muitos outros refugiados permanece incerta.
Monumento ‘Nós Somos Nossas Montanhas’, em Stepanakert (Khankendi), capital da autodeclarada República de Nagorno-Karabakh, não reconhecida pelo Brasil — Foto: Grandma and Grandpa by David Stanley / CC BY.
A alegação de limpeza étnica por Pashinyan é grave e exige uma ação concreta da comunidade internacional. No entanto, a resposta global a essa crise é complicada devido à mudança de posição da Rússia, que historicamente apoiava a Armênia, em direção a uma acomodação com a Turquia, que patrocina militarmente o Azerbaijão. Esse realinhamento geopolítico tem implicações significativas para a região e dificulta a busca por uma solução pacífica e humanitária.
O relatório divulgado em setembro pelo Observatório do Patrimônio do Cáucaso (Caucasus Heritage Watch, CHW) revelou uma sistemática tentativa de apagamento da cultura armênia na região de Naquichevão entre os anos de 1997 e 2011. A equipe do CHW, liderada por arqueólogos das universidades Cornell e Purdue nos Estados Unidos, utilizou imagens aéreas antigas, originalmente capturadas pelo governo dos EUA durante a Guerra Fria, e mapas elaborados por topógrafos soviéticos para identificar 127 mosteiros, igrejas e cemitérios armênios em Naquichevão, uma república autônoma do Azerbaijão que se separou dos estados da antiga União Soviética.
Imagens de satélite do local em que ficava o Novo Cemitério Armênio no Naquichevão.
Em seguida, eles compararam essas descobertas com imagens recentes para avaliar o que aconteceu com esses locais de grande significado histórico, arquitetônico e religioso para os armênios. Surpreendentemente, das 110 construções identificadas, 108 haviam sido completamente destruídas. Os autores do relatório, em seu documento de 430 páginas, descrevem essa ação como uma tentativa de apagamento cultural conduzida com uma precisão quase cirúrgica. Vale destacar que historicamente, Naquichevão foi ocupada por armênios e compartilha fronteiras com a Armênia, o Irã e a Turquia.
A situação atual também destaca a importância dos critérios de ESG (Ambiental, Social e Governança) nas relações internacionais. O deslocamento forçado é uma das consequências mais devastadoras desses conflitos. Famílias inteiras são obrigadas a deixar suas casas, muitas vezes em condições de emergência, em busca de segurança. Isso resulta em uma série de desafios humanitários, como a falta de abrigo adequado, acesso limitado a cuidados de saúde, insegurança alimentar e dificuldades no acesso a água potável e saneamento básico. O deslocamento também separa comunidades e destrói redes de apoio social, deixando as pessoas em situações vulneráveis.
Nesse contexto, a integração de critérios de ESG (Ambiental, Social e Governança) em abordagens diplomáticas e políticas é crucial. O aspecto “Social” do ESG enfatiza a responsabilidade de todas as partes envolvidas em considerar o impacto social de suas ações. Isso não apenas promove a ética, mas também destaca a importância fundamental de proteger os direitos humanos e aliviar o sofrimento das comunidades afetadas por conflitos territoriais.
O agravamento dessa crise
A crise humanitária resultante da guerra entre o Azerbaijão e a Armênia em Nagorno-Karabakh é uma tragédia que exige uma reflexão profunda sobre o sofrimento humano causado por conflitos étnicos e territoriais. O fluxo forçado de pessoas de seus territórios é uma das consequências mais devastadoras desse conflito, e merece uma crítica humanitária urgente.
Em conflitos como esse, as populações civis são frequentemente as mais afetadas. A guerra desalojou inúmeras famílias, deixando-as sem teto, acesso adequado a cuidados de saúde, alimentos e água potável. O relato de refugiados que enfrentam incertezas e dificuldades na busca por abrigo e segurança é um testemunho doloroso do impacto humano desse conflito.
Armênios fogem de Nagorno-Karabakh — Foto: SIRANUSH ADAMYAN / AFP.
A acusação de limpeza étnica, se confirmada, é uma afronta aos princípios fundamentais dos direitos humanos e exige uma resposta imediata da comunidade internacional. Ninguém deve ser submetido a perseguições ou expulso de suas casas com base em sua origem étnica. A proteção dos direitos humanos deve ser uma prioridade inegociável.
Até o momento, mais de 60% da população local, composta por 120 mil pessoas, já se deslocou pela sinuosa estrada de montanha que conecta o território à Armênia. Autoridades locais, bem como o primeiro-ministro armênio, Nikol Pashinyan, acusam Baku de promover uma limpeza étnica, após assumir o controle da região em uma ofensiva militar relâmpago de 24 horas na semana passada.
De acordo com informações do governo em Ierevan, até esta quinta-feira, 75,5 mil refugiados já cruzaram a fronteira. Um deles, Hayk, compartilhou por mensagem de texto que ele e sua família foram acolhidos de maneira acolhedora na terça-feira (26) em Goris, na Armênia, por uma equipe da Cruz Vermelha.
Hayk, um engenheiro de 43 anos que pediu para não ter seu sobrenome divulgado, relatou: “Eles nos forneceram comida e verificaram se tínhamos roupas adequadas. Não precisamos de alojamento porque temos parentes aqui, em Ierevan e Gyumri, mas não sei para onde muitas dessas outras pessoas serão direcionadas”. A mudança na posição da Rússia e o realinhamento geopolítico na região tornam a busca por uma solução pacífica e humanitária ainda mais desafiadora. No entanto, essa complexidade não deve desviar a atenção das necessidades humanitárias urgentes da população afetada.
Os armênios da região expressam uma profunda desconfiança em relação a essa promessa, tendo em mente uma história de derramamento de sangue que abrange duas guerras desde o colapso da União Soviética. Nos últimos dias, uma grande parte da população tem fugido em massa pela sinuosa estrada de montanha que atravessa o Azerbaijão, ligando Nagorno-Karabakh à Armênia.
Residentes de Nagorno-Karabakh deixam região a caminho da Armênia em 25 de setembro de 2023 — Foto: David Ghahramanyan/REUTERS.
A comunidade internacional, incluindo os Estados Unidos e outros países ocidentais, manifestou sua preocupação com a crise humanitária e pediu o acesso de observadores internacionais para monitorar o tratamento dado pelo Azerbaijão à população local.
Embora o presidente azeri, Ilham Aliyev, tenha afirmado que não tinha problemas com os armênios comuns de Nagorno-Karabakh, ele recentemente se referiu aos líderes locais como uma “junta criminosa” que deveria ser responsabilizada. Muitos dos armênios que fugiram nos últimos dias relatam fome e medo enquanto deixam a região em carros, caminhões, ônibus e até tratores carregados com seus pertences.
Em última análise, a crise humanitária em Nagorno-Karabakh deve nos lembrar da importância da solidariedade global e da necessidade de ações coordenadas para aliviar o sofrimento humano. Enquanto líderes regionais e globais buscam soluções políticas e diplomáticas, não podemos esquecer que a prioridade deve ser proteger e cuidar daqueles que estão mais vulneráveis nesse conflito, prevenindo mais perdas de vidas e deslocamentos forçados.
É um apelo à nossa humanidade compartilhada, independentemente das complexidades geopolíticas que cercam essa tragédia.
REFÊNCIAS
BBC News. (2020). “Nagorno-Karabakh: Raízes de um Conflito de Décadas.” BBC News. [Fonte: BBC News].
Al Jazeera. (2019). “O Conflito em Nagorno-Karabakh: Uma Visão Geral Histórica.” Al Jazeera. [ Fonte: Al Jazeera].
Reuters. (2020). “Nagorno-Karabakh: O Resgate do Cessar-Fogo.” Reuters. [Fonte: Reuters]
UNHCR. (2021). “Crise Humanitária em Nagorno-Karabakh: Deslocamento Forçado e Necessidades Urgentes.” UNHCR. [ Fonte: UNHCR].
The New York Times. (2020). “Realinhamento Geopolítico em Nagorno-Karabakh: Desafios para a Paz.” The New York Times. [Fonte: The New York Times].
National Geographic. (2018). “Desaparecimento da Cultura Armênia em Naquichevão: Um Relatório do CHW.” National Geographic. [ Fonte: National Geographic].
United Nations. (2020). “A Importância dos Critérios de ESG em Conflitos Territoriais.” United Nations. [Fonte: United Nations].
United Nations. (2021). “Apelo da Comunidade Internacional pela Observação em Nagorno-Karabakh.” United Nations. [Fonte: United Nations].
Human Rights Watch. (2019). “A Alegação de Limpeza Étnica em Nagorno-Karabakh e a Necessidade de Resposta Internacional.” Human Rights Watch. [Fonte: Human Rights Watch]









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